sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O cabide

Confrontei um cabide no meu guarda-roupa nesta tarde. Na verdade, foi há apenas alguns minutos. Deveria ser natural encontrar cabides dentro de um armário de roupas. Nada mais óbvio. O grande porém está justamente nele, o cabide.

Deus sabe quantos anos tem aquele cabide. Talvez mais do que os meus vinte e sete, que já julgo longos e fartos. É feito de madeira boa, como não se fazem mais hoje em dia. O cabo é de um ferro resistente a tudo, que não enferrujou. Não entendo de cabides e não quero procurar pelo nome do modelo. É daqueles duplos que fecham com um estalo do cabo de ferro. É feito de madeira boa. E dentro há uma etiqueta da associação de cegos, onde foi fabricado. Pronto. A associação ainda existe? Existem ainda os cegos que o fabricaram? Mas eu existo. E o cabide também.

Fiquei um pouco paralisada olhando para ele e ele me olhou de volta. Não subestime o cabide, ele tem tantas memórias quanto eu. Ele pendurou por anos roupas de minha avó falecida. Alternou-se entre trajes de minha mãe e de meu pai, que já não vivem juntos. E, por Deus, o mais doloroso: ele sentiu pesar aos poucos as minhas próprias roupas, que foram crescendo, tomando forma. Desde o vestido florido da infância, quando ele não era um cabide antiquado e os anos não lhe pesavam tanto. Hoje o encontrei sustentando três vestidos adultos, pretos. Luto puro.

Não pude mais. Tive de deixar o quarto, a coisa viva que é o cabide. Há algo vivo em meu quarto agora, algo com que não posso lutar. Tão vivo, o fantasma de minhas memórias.

03/12/2015

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